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NATAÇÃO

Um vulcão chamado Joanna

Aos 30 anos e radicada em Belo Horizonte, nadadora fala ao EM sobre os traumas do passado, as lutas travadas na vida pessoal e profissional e o futuro

postado em 27/06/2017 10:00 / atualizado em 27/06/2017 11:14

Beto Novaes/EM/DAPress
O vaivém na piscina do Centro de Treinamento Esportivo (CTE) da UFMG é ritmado. Braçada a braçada, corpo ora na superfície, ora submerso. Uma jornada quase solitária, não fossem os gritos do instrutor, que a acompanha do lado de fora, marcando o tempo. Joanna Maranhão em silêncio, num estado quase de transe, só ali mesmo, dentro d'água. Fora dela, essa pernambucana de sotaque acentuado é como um vulcão. Aos 30 anos, está disposta a viver tudo e intensamente – uma intensidade presente na vida profissional e pessoal, real e virtual. Taurina, abraça causas com passionalidade e as defende sem papas na língua. Justamente pelo temperamento forte, coleciona fãs e desafetos. Casada com o judoca minas-tenista Luciano Corrêa, a nadadora se mudou para BH há seis meses, entregou-se à capital mineira de corpo e alma. Um exemplo disso é o projeto social que ela lança nesta quarta-feira, às 19h30, na Associação Pessoal da Caixa Econômica Federal (APCEF-MG), na Pampulha, o Emancipa Esporte.

O programa que tem por objetivo levar a natação a crianças carentes é uma das “meninas dos olhos” da atleta. No Recife, terra natal, Joanna tem uma ONG, a Infância Livre. “Na ONG, a gente trabalha a temática da pedofilia. Mas não é para caçar ou julgar pedófilo. A gente trabalha com as crianças, de preferência de baixa renda. Vou para os lugares onde me convidam e conto a minha história, mostro ser possível superar o trauma. A chave do nosso trabalho é orientar as crianças a respeito de qual carinho é permitido, qual é abusivo e o que ela deve fazer”, destaca, explicando o motivo de ela passar longe de querer atuar como justiceira: “Quanto mais eu estudo mais vejo que alguns abusadores foram crianças abusadas, então considero mais importante acabar com esse ciclo vicioso do que apontar o dedo e julgar”.

A intenção dela é aliar o esporte à educação, para que a mensagem passada às crianças vá além da busca por medalhas. “O maior problema do esporte de alto rendimento no Brasil é que a gente foca em ter atleta para ganhar campeonato, ganhar medalha. Só que a gente se esquece que esses professores e técnicos são formadores, é preciso colocar valor no esporte. Temos muito campeão olímpico e até campeão mundial que é vazio, que só pensa em si. E a chance que a vida está me dando de aplicar essa filosofia, que é chave de mudança, me faz sentir muito honrada. E muito grata”.


O tema abuso infantil não entrou por acaso na vida de Joanna. Molestada por um ex-treinador quando tinha 9 anos, ela suportou o sofrimento calada por muito tempo. Em 2008, aos 21, decidiu denunciá-lo, o que resultou na Lei 12.650/2012, promulgada quatro anos mais tarde e batizada de Lei Joanna Maranhão – segundo a qual a prescrição do crime (estipulado em 20 anos) começa a contar a partir da data em que a vítima completa 18 anos.

Os danos do abuso foram muitos, inclusive levando a duas tentativas de suicídio, a última em 2013. Por essas e outras, a nadadora chegou a dizer que não apenas conheceu o fundo do poço, como foi ao “subsolo do fundo do poço”. O alicerce no ápice da crise foi a mãe, Teresinha, médica geriatra. “A minha 'aborrescência' foi um pouco tardia e veio com uma depressão muito forte, então foi um período muito crítico da minha relação com a minha mãe. E ela sempre segurou a onda. Às vezes, a gente se bicava, mas ela nunca me virou as costas e nunca me deixou largar a natação, nunca me deixou fugir. Se estou viva hoje é por conta dela, tanto porque me deu a vida quanto porque me fez renascer”, explica. A forte relação com a mãe tem outro motivo, revela. “Ela também passou por um abuso quando era criança, e o fato de eu verbalizar abriu portas até para ela, de ela se descobrir, fazer terapia. A nossa relação se aprofundou muito.”

A história dela é uma das contadas no documentário Mexeu com uma, mexeu com todas, lançado neste ano pela cineasta Sandra Werneck e que debate o tema da violência contra a mulher. Joanna ainda não assistiu. “Ia ver em São Paulo, no dia do lançamento, mas desisti, pois faltava uma semana para o Maria Lenk. Naquele momento pré-competição, eu não quis correr o risco de aquilo mexer comigo. Sei que foi uma atitude um pouco egoísta, pedi desculpas, mas quando a gente resolve se envolver em alguma causa, precisamos pensar primeiro na gente, principalmente eu enquanto vítima. Preciso da mente sã e tranquila para treinar, competir”, justifica.



Beto Novaes/EM/DAPress
A exposição e suas consequências

Tudo isso moldou a Joanna forte e contestadora de hoje. Figura popular nas redes sociais – são quase 30 mil seguidores no Instagram e 26 mil no Twitter –, ela não se furta a se posicionar. Sobre qualquer assunto, por mais polêmico que seja. Nada é tabu: “Alguns assuntos são mais difíceis. Falar sobre o meu abuso, por exemplo, me incomoda um pouco quando as pessoas pedem para eu descrever cada um. Acho muito mais importante eu falar sobre o fato de estar aqui, de pé, trabalhando no mesmo meio onde tudo aconteceu. Mas uma das coisas que me fazem sentir bem é verbalizar o que penso. Talvez daqui a dois anos eu não concorde, eu me proponho a me desconstruir constantemente. Mas nem por isso vou deixar de falar.”

E ela paga um alto preço por essa exposição. O mais alto deles talvez pelo posicionamento político. Assumidamente de esquerda, é ativista. Admite ter se decepcionado com o PT, mas sai em defesa da ex-presidente Dilma Rousseff. “Tenho uma militância do PT de adolescência, e tenho muito receio de falar sobre isso porque não quero ser mais uma pessoa a criminalizar o PT. Consigo enxergar que o partido fugiu um pouco das suas origens sindicalistas. Não concordo com o impeachment da Dilma, que é uma mulher que admiro muito, apesar de ter as minhas ressalvas em relação à política econômica dela. Acho que ela sofreu o impeachment por ser mulher, da forma violenta que foi. Aquele adesivo colocado nos tanques de gasolina dos carros, em que ela está de pernas abertas, se fosse homem não haveria. Mas ao mesmo tempo não concordo com a aliança do PT com o PMDB. Por mais que me falem que não se chega a cargo majoritário sem fazer aliança. Se para chegar lá tem de jogar o jogo, que a gente não chegue lá até que se mude a regra do jogo”.

O desalento com o PT a levou ao Psol mineiro, partido ao qual ela se filiou em fevereiro. Haveria alguma pretensão de seguir carreira política depois de pendurar o maiô? “Não vou dizer que não, de jeito nenhum. Se houver uma reforma política que possibilite a alguém chegar sem ter de receber financiamento de campanha, sem ter de fazer caixa 2, pode ser que eu comece a pensar que sim. Mas não me filiei pensando nisso, foi por ideologia mesmo. Admiro muito o Chico Alencar, Ivan Valente, Luciana Genro, Jean Willys, Marcelo Freixo e outros militantes do partido”.

Volta e meia ela trava debates pelas redes sociais sobre política. Lamenta que alguns discursos sejam baseados em ataques, e não em ideias. “Tem gente que me chama de esquerdopata, mortadela, e olha que nem carne vermelha eu como! Esse tipo de discurso eu nem respondo mais. As pessoas não querem estudar, não querem ler sobre, não querem se abrir para outras ideias e daí tirar a conclusão. Elas estão polarizadas e pronto. E essa carapaça da Joanna Petista meio que pegou, só que não dá para as pessoas me conhecerem por 140 caracteres.”

Engana-se quem pensa que ela gosta das discussões: “Eu me sinto mal quando tenho embates com pessoas que pensam diferente de mim, porque isso virou muito mais uma disputa de convencimento, e não um debate de ideias. Não quero convencer ninguém a pensar como eu, e sim discutir os assuntos educadamente, colocar as pessoas para pensar”.

Uma queda de braço recente foi com a ex-jogadora de vôlei Ana Paula, que mora nos Estados Unidos e adota postura de direita. Joanna brincou a respeito do apoio da ex-atleta mineira (nascida em Lavras) ao senador Aécio Neves, na época da campanha à presidência, e foi rebatida por Ana Paula, que a menosprezou por não ter medalha olímpica. “Eu me arrependi. Fui fazer uma brincadeira imbecil, depois até mandei uma mensagem para ela. A Ana Paula é uma pessoa que não brinca na internet, ela agride. E as pessoas também a agridem muito, de forma pesada. Então, para quê que eu fui ser mais uma? Não sei se ela enxerga que errou ao fazer vídeo apoiando Aécio Neves, mas eu não precisava entrar nisso. Foi uma brincadeira desnecessária da minha parte. E a retórica dela é a que ela usa para todas as pessoas: eu tenho medalha olímpica, você não tem.”



Beto Novaes/EM/DAPress
Batalhas dentro e fora das piscinas

A postura crítica – e suas consequências – não é fruto da nova era. Joanna começou cedo a bater de frente com a Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA), especialmente a gestão de Coaracy Nunes, presidente por 29 anos e que foi preso em abril pela polícia federal por causa de desvio de verba. “Entrei na seleção com 14 anos e dos 16 que passei lá, 11 foram de luta contra a gestão do Coaracy”, conta. No início da carreira, relembra, não via nenhum problema na atuação do dirigente. Com 17 anos, Joanna ganhava o suficiente para comprar seu primeiro carro, à vista. “Muita gente fala que os primeiros oito anos de gestão do Coaracy foram muito bons, e acredito. Mas a alternância de poder é necessária. A democracia é vital. E não acontecia. Os mandos e desmandos eram absurdos, de ameaçar técnico, atleta, árbitro, presidente de federação, comprar voto, até chegar aos R$ 160 milhões de desvios. Sinto pena que um homem de 80 anos, que é pai e avô, tenha de ficar em Bangu, mas infelizmente é o que a Justiça determinou, ele está pagando pelo crime que cometeu”, sintetiza.

A luta quase solitária contra a corrupção na CBDA acompanha Joanna desde que ela chegou ao ápice: na Olimpíada de Atenas'2004, aos 17 anos, ela se tornou a primeira atleta brasileira a chegar a uma final olímpica em provas femininas. Terminou em quinto lugar nos 400m medley, mas saiu da Grécia como se tivesse conquistado o ouro. Dali em diante, contudo, não conseguiu reeditar o desempenho. Chegou a pensar em parar. E não foi apenas uma vez. Em todas elas, ressurgiu com força. “Falei que ia parar depois de Londres'2012, e continuei nadando. Em 2014, parei e voltei. Aí decidi parar depois da Rio'2016. Desisti e falei que ia nadar só mais este ano, porém também já estou revendo isso. Vou parar de colocar deadline. Porque para mim não é mais bater na frente, ou estar na seleção. Eu realmente me despi de todo tipo de vaidade. Vai ser até quando meu coração quiser. Se com 40 anos eu estiver nadando 400 medley para cinco minutos, mas estiver me sentindo feliz, vou continuar nadando”.

Aos 30 anos, quando muitos atletas estão prestes a se aposentar, ela conseguiu índice (400 medley) para mais um Mundial, o de Budapeste, a partir de 23 de julho. E neste ano decidiu se aventurar até na maratona aquática. Se foi ou não presunção demais não se sabe, mas até índice para o Mundial nessa prova ela tentou. “Por ter uma condição cardiorrespiratória muito boa, pensei: por que não? Fiz duas etapas. Na primeira, terminei em quarto; na segunda, tomei umas pancadas e parei no meio. Em termos de resistência, achei tranquilo. É muito mais a questão da malícia, de saber me guiar. Gosto de desafio, de tentar o novo”.

Joanna não tem medo de recomeçar. Muito menos de parar. O futuro segue indefinido. “Estou num momento da minha carreira em que estou nadando tudo o que é tipo de prova, aprendendo tudo, e estou me sentindo bem assim, recomeçando aos 30 anos. A partir do momento em que eu não conseguir mais bons resultados, sei que isso vai se refletir financeiramente, e talvez será o momento de fazer uma transição. Mas hoje, que estou fisiologicamente bem, e consigo me manter financeiramente, recebendo de fontes que são confiáveis, porque isso é pré-requisito para eu dormir de noite, tenho mais é que continuar”.

O que vem por aí ela não revela. Só deixa escapar um lado utópico ao falar do próximo passo – ou, no caso, braçada: “Quando começo a pensar no futuro, vem um milhão de ideias, então acho melhor não pensar mais. Muita gente fala para eu tentar carreira política, mas tenho muito medo, porque não quero que o sistema me endureça. Acredito na revolução do amor, de plantar a semente, de projetos. Podem achar que não tem nenhum ou tem pouco efeito, mas faço a minha parte”.



A rotina em BH

A rotina de treinos de uma atleta de elite é pesada. De segunda a sábado, ela começa o dia bem cedo, no CTE. Sai de casa, no Bairro Gutierrez, antes das 7h. São duas horas dentro da piscina e quase o mesmo tempo na academia. Às segundas, quartas e sextas, os trabalhos são em dois turnos. Durante três semanas, ela treina em BH. A outra semana do mês ela passa na cidade paulista de Santos, já que é atleta contratada pela Universidade Santa Cecília (Unisanta). Só assim Joanna conseguiria conciliar a vida de atleta e a de casada, em BH. Até porque, além de Luciano, mora com os "filhos" do casal, dois cãezinhos que ganharam nomes de golpes de judô: wazari e ippon. "O meu técnico manda o treino, mas meu preparador físico é do CTE, a fisioterapia também é daqui, então eu faço parte da equipe do CTE e represento a Unisanta."

O moderno centro de treinamento da UFMG foi uma agradável descoberta para a nadadora, que foi atleta do Minas de 2009 a 2011. “Quando o atleta vem de fora para treinar no Minas, fica muito restrito àquele ambiente, e acha que BH se resume ao Minas. E não é. Com todo respeito ao Minas, até porque o Luciano está lá há 18 anos e toda a história dele é no Minas, mas depois que saí de lá que comecei a ver que há um cenário esportivo incrível na cidade, com profissionais incríveis, aqui na UFMG mais especificamente. O CTE é de primeiro mundo, não há outro igual no Brasil, e com pessoas que trabalham de forma tão embasada cientificamente, atualizadas com os principais estudos da área no mundo”, comenta.

No deslocamento pela cidade está aquele que ainda é o grande obstáculo para Joanna. Mas ela lida com bom humor. No domingo, por exemplo, marcou de se encontrar com Luciano Corrêa em Contagem, onde ele acompanhava uma competição de judô. Errou o caminho e foi parar em Sabará. Não se deu por vencida, atrasou alguns (muitos) minutos, mas corrigiu a rota e chegou ao destino final. No trânsito ou nas piscinas, que ninguém duvide da fibra desta mulher.
 
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Emancipa Esporte
 
O objetivo do projeto, segundo Joanna Maranhão, é capacitar estudantes de educação física para dar aulas de natação para crianças carentes na APCEF. Serão abertas quatro turmas de 20 crianças cada, de oito a 12 anos. “Eu e o Gabriel Quinan, meu preparador físico, vamos passar a nossa metodologia para que os estudantes ministrem as aulas”, diz a nadadora, destacando que todos os envolvidos se dispuseram a trabalhar de forma voluntária. Ela conta que a APCEF já recebe cerca de 400 crianças, que fazem aula de atletismo e judô. “Nossa ideia é também oferecer palestras sobre pedofilia, gravidez, drogas. E quando a turma estiver nadando os quatro estilos, se alguma criança quiser ser atleta, a gente vai tentar encaminhar para o CTE. Estou louca para ver a meninada na água e ensiná-los a nadar. Meu coração está acelerado. Já tenho um monte de touca e de óculos para distribuir”, comenta, com brilho nos olhos.
 

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