CLUBES DA ESQUINA

Na poeira e no coração

História de bicampeão da década de 1940, o Terrestre, fecha série de reportagens do EM e mostra por que os times de bairro já foram uma febre na capital mineira

postado em 12/12/2014 08:46 / atualizado em 12/12/2014 08:54

Renan Damasceno / Estado de Minas

Edmar Queiroz/Arquivo Pessoal
No início da década de 1940, muitos fãs de futebol até poderiam dar de ombros para o campeonato profissional, mas era difícil encontrar, entre os pouco mais de 200 mil habitantes de Belo Horizonte, quem não se interessasse pelo resultado de duelos como Terrestre x Brasil – conhecido como o Fla-Flu da Lagoinha –, Independente x Ferroviário, no Horto; os embates entre Pitangui, Fluminense ou Tremedal, também na Lagoinha; Juventus x Vasco, no Carlos Prates; além de outros clubes populares como Matadouro, Santa Tereza, Parque Riachuelo e Pompeia, que lotavam os campos de terra por onde passavam.

A popularidade do futebol amador era tanta que os jornais da época, muitas vezes, destacavam os scores do campeonato do Departamento de Futebol Amador – que passou a gerir os times varzeanos em 1942, substituindo a Liga Amadora, de 1933 – e relegavam a segundo plano os jogos do profissional. “Coube ao Terrestre o título de campeão do initium amadorista”, por exemplo, era o destaque do Estado de Minas de 27/4/1943 sobre o primeiro dos dois títulos consecutivos do rubro-negro.

O Terrestre era conhecido como “o clube mais querido” pela popularidade em campo e pelos disputados bailes dançantes na sede social, à Rua Itapecerica, no limite entre a Lagoinha e a Pedreira Prado Lopes. Tanto que, no fim da década de 1930, surgiu em seu escrete o primeiro grande ídolo do futebol de várzea da capital: Edward Queiróz, conhecido como o Mestre Blatgé. Em agosto de 1939, o extinto Folha de Minas premiou o beque, então com 23 anos, com o montante de 3 contos de réis e o título de “Crack absoluto da várzea”. Em concurso promovido pelo jornal, Blatgé recebeu 35.741 votos, superando Barbosa, do Clube Gymnastico (21.037), e Esné, do Santa Cruz (17.298).

Segundo o periódico, a cerimônia de entrega do prêmio, na sede do Terrestre, “constituiu um acontecimento de grande realce nos círculos amadoristas da capital”. A eleição mostra o envolvimento da cidade com o futebol amador: 74.076 votos em uma capital cuja população passava pouco dos 200 mil.

Edward mudou de Juiz de Fora para a capital na virada dos anos 1920 para 1930 trazendo uma recomendação do Tupi ao Atlético para contratá-lo. Como precisava conciliar o futebol com o trabalho, não conseguiu espaço no alvinegro nem no América. Morador da Lagoinha, bairro operário, obteve emprego na Mesbla – loja de departamentos brasileira fundada em 1912, filial da francesa Mestre et Blatgé, de onde surgiu o apelido do craque.

SAUDADES E LEMBRANÇAS O Terrestre resistiu até meados da década de 1970. Do rubro-negro resta a saudade da comunidade, o casarão da Rua Itapecerica – um sobrado onde hoje funcionam bares, borracharia e uma relojoaria – e uma das maiores heranças do carnaval de BH: o bloco Leão da Lagoinha, precursor da Banda Mole. “Era uma época muito boa: assistir aos jogos no barranco do campo do Pitangui, dançar nos bailes, o carnaval...”, lembra Adélia Mendes, filha de um dos últimos presidentes do Terrestre, Paulo Mendes, conhecido como Paulo Açúcar. “Eu me lembro do meu pai subindo a Rua Itapecerica com os filhos pequenos. Todo mundo o tratava como ídolo. Parava e conversava com todo mundo. Era um gentleman”, lembra o filho Edmar Queiróz.

Edmar Queiroz/Arquivo Pessoal


Mesmo abandonado pelo poder público e espremido, a cada ano, pela expansão imobiliária, o futebol amador resiste ao longo das décadas. Depois do Terrestre, o Santa Tereza – que contava com um dos melhores campos da cidade, o Estádio Benedito Valadares – conquistou quatro títulos seguidos. Na década de 1960 e 1970, Tremedal x Rosário (do restaurante de mesmo nome, na Avenida Paraná) movimentava a cidade. A partir dos anos 1970, a Federação Mineira de Futebol passou a organizar a Divisão Especial do Amador, cujos clubes, como Mineirinho (Alto Vera Cruz), Ferroviária (Pedreira Prado Lopes), Portuguesa (Providência) e Pompeia, colecionam troféus. A competição, sempre no primeiro semestre divide atenção com a Copa Centenário, realizada desde 1997, no segundo semestre, e a Copa Itatiaia, disputada desde 1962, que começa amanhã. E em seus campos, boa parte de terra batida, times e comunidade vão resistindo. Por honra e amor a camisas que só aqueles que as vestiram e os que as conhecem de perto sabem do imenso esforço para manter vivo esse sonho.

 

Manter vivo o sonho

O Estado de Minas e o Superesportes encerram nesta sexta-feira a série Clubes da Esquina, que desde domingo contou a história (e algumas estórias) do futebol amador de Belo Horizonte. Times quase centenários que lutam para sobreviver e continuar construindo um dos maiores patrimônios da capital. Em seis dias, as reportagens apresentaram jogadores, ex-jogadores e diretores que, longe do glamour, sem ajuda do poder público e espremidos pela especulação imobiliária, tentam manter viva uma das principais atrações das comunidades: a pelada de fim de semana, disputada em campo de terra, areia ou grama, com torcedores aglomerados em barrancos, bancos de tábua ou arquibancadas de cimento. Histórias que se repetem nas mais de 230 equipes amadoras em atividade e que os 4,5 mil atletas registrados pela Federação Mineira de Futebol sentem na pele. Uma paixão genuína que o profissionalismo perdeu com o tempo e que a população precisa lutar para não acabar de vez.

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