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Crônica de um marinheiro de primeira viagem: Regata Recife/Noronha a bordo do Miragem

Editor do Superesportes integrou a tripulação do barco, que terminou a competição na terceira colocação da classe ORC

postado em 28/09/2016 20:30 / atualizado em 30/09/2016 23:38

Marcel Tito /Diario de Pernambuco

Arquivo Pessoal

FERNANDO DE NORONHA - Trinta e quatro horas, 51 minutos, 26 segundos. Essa é uma das medidas da viagem a bordo do veleiro Lexus/Miragem, na travessia Recife/Fernando de Noronha. Do tempo. Há outras. Das dores físicas. Das cores que vestem o mar durante o dia. Da completa escuridão que toma conta do espelho d’água à noite e multiplica as estrelas no céu. Há ainda a medida do imprevisível. Da ansiedade. Do sono que não encontra tempo no relógio. A medida da conversa levada pelo vento. Da música que faz companhia ao silêncio. Do silêncio que faz companhia às ondas.

Trinta e quatro horas, 51 minutos, 26 segundos. De modo aproximado, é possível destinar, a cada uma dessas medidas, o tempo que lhe cabe. As primeiras frações são ocupadas pelo “tradicional” receio do enjoo. Convidado que não apareceu. Felizmente. Talvez o comandante Alexandre tenha razão. É coisa da cabeça. E a cabeça estava ocupada. No Miragem, desde o embarque, pouco depois das 10h do sábado, notava-se o espírito e o ritmo de competição. Checagem dos detalhes para a partida anunciada para as 13h. A busca pelo limite entre não queimar a largada e passar pelo check in desperdiçando o mínimo de tempo, como se aqueles segundos pudessem ser decisivos no fim.

Precisamente às 13h, o Miragem partiu. Um ritmo alucinante tomou conta do convés, no início. No barco, cada um tinha a sua função. Para quem veleja pela primeira vez, não há muito a não ser desviar e passar por baixo da retranca, a base da vela, parte móvel do mastro que vira a cada movimento. Sete, oito vezes. Até a calmaria, vinte minutos depois da saída. Pouco antes do fim do muro de corais, o barco está na rota dos ventos. É hora de organizar os turnos de descanso para a noite, maleáveis de acordo com as demandas do percurso. Instruções dadas, vem o silêncio.

O LUGAR NO BARCO

Arquivo Pessoal

Escora. A função consiste em utilizar o corpo como contrapeso. É a projeção do próprio peso para o lado oposto ao qual o barco está inclinado, empurrado pelo vento. A intenção é reduzir a inclinação para aumentar a superfície de contato do barco com o mar. Brigar com o vento, sentado na borda do barco, com as pernas para fora. Corcunda, entrelaçado em dois cabos de aço. Há ainda uma faixa de madeira na borda do barco que machuca a parte de trás do joelho e da coxa. Isso faz com que as dores ocupem um espaço generoso do tempo na viagem. Desde que começaram a aparecer, foram dez, 12 horas. E não há nada capaz de reduzi-las. Elas estarão lá até o último suspiro das 34 horas, 51 minutos e 26 segundos.

SURGE A MÚSICA

A primeira hora é do som do mar. Pouco se fala no barco. Mas o silêncio não é, ainda, de fadiga, exaustão, como acontecerá em determinados momentos. Soa como uma preparação para a mente. Até que surge uma pequena caixa de som, colocada no convés. A partir daquele momento, a música passa a ser uma companhia constante. Uma trilha sonora eclética que atende, por vezes, à necessidade do momento. Em períodos noturnos, as mais calmas são preteridas. É preciso não dar brechas ao sono.

O RECIFE COMO SOMBRA

Arquivo Pessoal


A novidade ajuda nas horas iniciais. Assim como a ausência do enjoo. São quatro horas descobrindo a sensação de velejar. Vendo os demais veleiros espalhados pelo mar. À frente, está o mar e o céu. A linha perfeita do horizonte. Atrás, o Recife vai ficando pequeno. Vira sombra. Vai sumindo aos poucos. A internet ainda chega ao celular. Permite o último contato com a terra. O sol jogava os seus últimos raios quando acabou a bateria, fim da transmissão. O início da noite esperada.

O VAZIO DAS ESTRELAS
Era um desejo: ver o céu à noite sem a interferência artificial das luzes da cidade. Uma das razões para enfrentar o desafio da travessia, com todos os medos que lhe cabem. O sol despediu-se às 17h. A claridade, uma hora depois. Mas ainda havia um resquício de luz do sentido do Recife. A noite ainda ia caminhar um pouco mais para a escuridão. Por volta das 21h, não faltava mais nada. Era um céu sem nuvens, com mais estrelas que lhe cabiam, misturadas às pequeninas luzes dos barcos.

Pelo menos uma vez, cada um dos tripulantes comentou sobre o céu. Alguns com anos de experiência nos mares. Acenavam para uma beleza que não cansa. Tão intensa que, em algum momento, dói. É o sentir vazio da própria insignificância, a percepção do eu como prisioneiro de amarras cotidianas que ofuscam o sentir-se vivo. Amarras que prendem os olhos costeiros a coisas pequenas. É um vazio que liberta.

A LUA
Havia uma claridade grande por trás da vela, um ponto invisível da vista. A inexperiência dizia que a lua poderia estar ali. Estava errado. Eram estrelas. A lua iria aparecer minguante, amarelada, às duas da manhã. Para aperfeiçoar o que não precisava de retoques. Apareceu para curar um pouco os males do cansaço e anunciar a hora do descanso. Adiado por uma hora. Até as 3h, enquanto observava o pedaço do céu recém-descoberto.

CANSAÇO
Os primeiros sintomas aparecem com a procura pelo tempo. A hora exata. Nada impede o cansaço de desabar sobre o corpo. Há quem durma na parte de cima do barco. No estreito corredor rente à borda. Deitado ou sentado, com as costas apoiadas no barco. Há quem desça para a cabine para dormir em uma das camas. O balanço do barco, ali, não tem harmonia. É violento. Vence-se com o costume ou pelo cansaço extremo. O meu caso. Desci para cabine às 3h do domingo. A desconfiança de que o enjoo poderia surpreender sumiu sem avisar. Com o sono pesado que desabou sem aviso.

O DESPERTAR
Guilherme desceu correndo na cabine. Só eu dormia na cabine, naquela hora. “Tem um catamarã com o mastro quebrado!” Entrou correndo, como se procurasse algo, uma lanterna, até agora não sei o que era. Despertara de vez, sem acordar ao certo, sem levantar. Sem conseguir levantar. Na primeira tentativa, um movimento brusco me lançou de costas para cama. Assim como na segunda vez. Algo diferente do normal. A embarcação mudava de curso. De dentro da cabine, escutava o diálogo de uma tripulação que se movimentava junto com as velas para chegar o mais rápido possível do veleiro A Travessia, da Paraíba. A aproximação confirmou que todos estavam bem. Recolhiam o mastro, quebrado, para regressar ao continente.

Pelo rádio, na cabine, Chris tentava contato com a Marinha para avisar do incidente. Outras embarcações estavam na conversa. Entre códigos e contatos sem resposta, a decisão era de esperar até a confirmação de que o socorro estava a caminho. Não demorou. Os próprios tripulantes de A Travessia sinalizaram nesse sentido. O rádio também. Era hora de retomar o caminho, à competição. Era hora de tentar levantar mais uma vez.

O MAR
Sentado na escora, de frente para o mar, acostumado ao balanço, a cabeça viaja. As ondas vem de encontro ao barco. Com as costas encostadas no convés, diante do horizonte, a sensação pode ser a metáfora de estar sentado diante de uma praia com um mar de azul intenso, sem memória. Sensação desfeita ao olhar para os lados, olhar para trás. Ao redor do barco, na manhã do domingo, só existe mar.

AS REFEIÇÕES
O café da manhã chega. Assim como todas as outras refeições, é algo rápido. Um sanduíche, um copo de suco, refrigerante. Na noite anterior, havia sido pizza, preparada num forno que fica na cabine. Ninguém deixa o posto. Recebe e come no lugar onde cada um está. Na escora, no timão... A variação para a pizza era a lasanha. Dessas congeladas. Servida na própria embalagem. Compartilhada, como tudo na embarcação.

A ANSIEDADE
Trinta e quatro horas, 51 minutos, 26 segundos. A linha até chegar a esse tempo é curva. Há momentos em que o relógio é completamente esquecido. Essa é a hora das estrelas, do mar, da conversa que desvenda um pouco da solidão e das saudades de cada um. Há também momentos de ansiedade. O mar tem o seu tempo. É diferente do continente. Em todos os sentidos. Passa dos 10 nós na contemplação. Parece imóvel quando se pensa na chegada ao continente.

Sentimento que pode ser transmitido na sensação do quase chegar. Numa viagem de carro ou avião, ele vem na hora final da viagem. No mar, vem no plural. Às 13h do domingo, vinte e quatro horas após a saída, o anúncio das dez horas que faltam. A reta final da travessia. Da competição também. De longe, o Miragem tem como referências o catamarã Toro, logo à frente, de outra categoria; e o Marujos, da mesma classe, a ORC, com quem disputou a segunda colocação até os últimos minutos da regata – apesar da grande distância, o tempo real não define o pódio obrigatoriamente. É equalizado pelo rating. Ele dava a possibilidade de o Miragem terminar à frente na classificação, mesmo com um tempo superior. A margem era de 23 minutos.

Dez horas que passam lentas. Bombardeadas pelo cansaço. Às 17h, quando o sol mais uma vez se recolhe, o sono golpeia. Mais uma vez, é confrontado. O último anoitecer da travessia vale o esforço. Às 19h, não dá mais. De volta ao balanço da cabine, ao receio do enjoo. Sono mais curto do que o anterior. Uma hora apenas.
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A CHEGADA
O despertar, desta vez, não é de susto. É natural, pela movimentação do barco e pela impressão de que ali, na cabine, estaria a se perder algo. Eram 20h. A chegada a Fernando de Noronha aconteceria em duas horas, três no máximo. Hora de voltar para o convés. Ouvir o mar, a música, o vento, a conversa. A ajuda na escora é quase nula. As pernas não aguentavam mais. Aguentariam.

Quando Fernando de Noronha já é um clarão no Oceano Atlântico, o barco acorda da inércia que o conduzia ao arquipélago. Um último esforço em busca de um degrau no pódio. A ordem do comandante Alexandre é para acordar a todos. Todos para a escora, exceção de João, que ajuda o comandante nos ajustes para tentar acelerar a embarcação. De volta à escora, abandonada pelas dores. Que continuam lá. Com a mesma intensidade. Havia um limite extra para elas, porém.

Noronha fica cada vez mais perto. De um clarão, vira sombra no mar. Escultura de pedra. Vozes. A aproximação é informada pelo rádio. Vira o último esforço pela competição. Transforma-se em abraços após a buzina soar, anunciando a chegada do Lexus/Miragem ao arquipélago. A saudação de boas vindas. Dilmar convoca a todos no convés, abraçados, como fizera na saída. No Marco Zero, era um pedido. Agora, agradecimento pela chegada, pela dedicação e trabalho de cada um.
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A CERVEJA
A chegada depois das onze da noite não tem chegada. Não na areia. A tripulação vai dormir no barco. Chegar à terra firme só quando o dia aparecer. Antes, é preciso organizar minimamente o barco. Ainda antes, é preciso um brinde. As poucas cervejas guardadas na geladeira do barco chegam ao convés. Abertas. Divididas. A melhor dos 36 anos de existência. Bebida com calma. Comemoração finalizada com o primeiro banho desde a entrada no barco. Às três horas da manhã. No mar de Fernando de Noronha.

A TRIPULAÇÃO
Havia tido um primeiro contato antes da travessia com alguns dos integrantes da tripulação. Rápido. Pode-se dizer, portanto, que as sete pessoas que encontrei ao subir no Miragem, no Marco Zero, eram completamente desconhecidas. Hoje, posso dizer, com certeza, que são pessoas que vão ficar comigo por muito mais do que 34 horas, 51 minutos e 26 segundos. São pessoas que admiro e a quem agradeço pelo acolhimento, pela generosidade.

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Ao comandante Alexandre Marin: pela tranquilidade, com quem dividi a sensação da saudade de quem ficou em terra. No meu caso, de poucas horas. No dele, medida em dias. Completava um mês fora de casa. Ama velejar. Ama o mar. Estava ali de corpo e alma. Mas não escondia a vontade de voltar para casa e rever a esposa e os dois filhos antes da próxima viagem.

A Guilherme Vestphal, que além de todas as atribuições de velejador, era quem enfrentava o balanço da cabine para preparar café da manhã, almoço, jantar... Que se colocou à disposição para evitar as minhas entradas na cabine.

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A Dilmar Cassita, que tem o mar nas veias, pela mesma de tranquilidade do comandante, pelas histórias contadas, pelas explicações, pela ajuda. Por semear um pouco dessa paixão pelo mar e suas descobertas.

A João Eduardo, o mais jovem da equipe, que tem pressa para domar o oceano da mesma forma que o respeita. “Não deixe o mar te engolir.” Traz a tatuagem no peito. Tem uma alegria de estar ali, no barco, ímpar.

A Luciano Richinho, pelas conversas e companhia na escora, dia e noite. Ele que, assim como eu, entrou no Miragem no dia da partida. Iria para Fernando de Noronha de avião. Queria seguir pelo mar, caminho pelo qual chegou ao Recife. Encontrou abrigo na tripulação. Cancelou a passagem. Foi pelo mar. E com ele vai conviver por muito tempo.

A Chistina Frediani, pela energia que espalhava no barco, sempre atenta aos detalhes do barco, do mar, dos equipamentos de medição.

A Mara Mussini, velejadora argentina, pela disposição, segurança e resistência contagiantes.