Copa do Mundo

MACHISMO

Muito além da Rússia: mulheres denunciam machismo no esporte em Minas Gerais; leia os relatos

'Mulher assiste futebol para agradar namorado', 'só está no site porque deu para a pessoa certa', 'Parece homem!', foram frases relatadas

postado em 21/06/2018 19:05 / atualizado em 25/06/2018 10:10

Divulgação/Mineirão

Nos últimos dias, vídeos que registraram atitudes machistas e misóginas de brasileiros na Rússia viralizaram nas redes sociais. As cenas de assédio a mulheres estrangeiras no país que sedia a Copa do Mundo de 2018 foram amplamente criticadas e reacenderam discussões sobre situações semelhantes que ocorrem frequentemente com mineiras, mas que não recebem a mesma atenção da imprensa e dos próprios torcedores.

Ao Superesportes, mineiras de diferentes idades denunciaram o machismo sofrido diariamente no ambiente esportivo. Leia os relatos a seguir:

“Mulher assiste futebol para agradar namorado”

"Top 3: 

1 - Empate entre Cruzeiro e Vasco antes da Copa. Estava na Praça da Liberdade esperando a minha amiga sair da aula e procurando em qual bar eu iria assistir ao jogo. Estava falando no telefone e tinham três rapazes atrás de mim. Dado momento, falei que não sabia onde iria ver o jogo (ao telefone). Um dos rapazes respondeu que poderia ser na cama dele, já que mulher assiste futebol para agradar namorado mesmo; 

2 - 2014, comemoração do Campeonato Brasileiro na Savassi. Estava rolando uma "coreografia" para a música Amamos o Cruzeiro é o que interessa", e a Savassi tinha sido fechada por nós, cruzeirenses. Saí do meio da rua pra ir comprar água no MC. Eu tava muito feliz com o acontecimento e não queria ficar com ninguém. Estava lá só pela festa mesmo. Quando cheguei na porta do MC, fui abordada por um moço, provavelmente atleticano, que me pediu um beijo (na verdade, chegou tentando beijar). Eu desviei... Ele ficou puto. Me mandou tomar no cu. Disse que eu nem era tão bonita assim e que eu só poderia torcer pro Cruzeiro mesmo;

3 - Clássico entre Cruzeiro e Atlético, não sei qual ano. Atlético estava ganhando de 1 a 0, Cruzeiro empatou, depois virou... Eu estava na janela de casa gritando para o mundo. Meu vizinho, atleticano doente, ficou puto, me mandou tomar no cu e procurar umas vasilhas para lavar, porque é isso que mulher tinha que fazer."

Lilia Giessi, de 27 anos

“Num estádio de futebol quem manda somos nós, heteros”

"Dei entrevista para um jornal. Os comentários da publicação no Facebook eram sempre os mesmos:

  • Futebol não é coisa pra mulher nem para "viado/sapatão"
  • Futebol é um espaço de homens e vocês nunca vão tirar isso da gente

Um dos comentários era: “Vocês LGBT podem querer mandar em vários setores, mas num estádio de futebol quem manda somos nós, héteros. E isso nunca vai mudar e se acharem ruim tende a piorar para vocês ainda mais”."

Isabella Caroline de Souza, 23 anos

"Um deles me puxou para o meio de outros três"

“Em um jogo entre Palmeiras e Atlético, fui com as meninas para o Independência. Como são consideradas “torcidas amigas”, não tinha separação entre torcedores antes e depois do jogo. Quando passamos por um grupo de palmeirenses, um deles me puxou para o meio de outros três, em uma rodinha, me afastando das minhas amigas. Fiquei apavorada! Comecei a gritar e empurrar o cara enquanto ele ria da minha reação. Depois de me ridicularizar por ter ficado com medo eles me deixaram sair do meio deles como se não tivessem feito nada demais.”

Torcedora do Atlético, 30 anos

“90% dos comentários só colocam em evidência meu corpo”


"Faço parte do Blog Camisa Doze, que cobre o Atlético. Tenho um quadro no Youtube que se chama ‘Camisa Delas’, em que eu conto histórias de atleticanas que têm por opção a arquibancada, que vivem a arquibancada. A ideia do quadro é contar um pouco a história dessas mulheres com o Atlético. No último vídeo que eu fiz, com a Gleice e com a Andréia, teve um comentário de um cara xingando elas. Isso me afetou. Direto tem comentários que objetificam só meu corpo… Mas eu, geralmente, não dou muita importância, apago, não comento. Geralmente, peço para apagar. Nesse, por ofender minhas convidadas, as personagens do meu quadro, eu senti e tirei satisfação com o cara. Em momento nenhum, ofendi ele. Ofendi o comportamento dele. Aí ele foi muito escroto comigo. Houve uma discussão. Não é uma coisa habitual para mim no Youtube, responder comentários assim. Houve uma discussão entre a gente. No final, ele me ameaçou fisicamente, de agressão. Falou que ia me bater e tudo mais. Dentro disso que aconteceu, o que realmente me afetou muito foi que ouvi (de outra pessoa) que ele só me ameaçou de agressão física, falando que iria me bater, porque eu respondi o comentário. Se eu não tivesse respondido o comentário, esse transtorno não teria acontecido. Aconteceu isso da culpa ser da vítima. Eu tive convicção que eu não tenho que estar preparada para esse tipo de coisa. A culpa nunca é da vítima. O que eu posso falar é que 90% dos comentários dos vídeos em que apareço são comentários que só colocam em evidência meu corpo ou são comentários do tipo que eu não entendo de futebol. Os outros 10% são comentários positivos."

Lorena Fernandes, 25 anos

“Só está no site porque deu para a pessoa certa”

"Eu escrevo sobre futebol desde 2014. De lá para cá, já aconteceu muita coisa, tanto de pessoas para quem eu escrevia, quanto de pessoas que liam meus textos ou pessoas que eu conhecia nesse meio. No primeiro site para o qual eu escrevia, o dono do site começou a me cantar e a falar que estava apaixonado. O menino morava em Ipatinga. Na época, eu namorava, e ele sabia que eu namorava. Independentemente disso. O menino chegou a inventar um câncer para eu ter dó dele. O menino inventou um câncer. Com o tempo, fui vendo que era uma prática recorrente, que ele colocava meninas na equipe do site… Quando entrei, eu era a única. Ele foi colocando meninas na equipe do site para dar em cima delas. Uma delas caiu. Ela não mora aqui (em Minas Gerais), ela mora na Bahia. Há pouco tempo, ela veio me procurar, falando comigo que eu tinha avisado ela e que o que eu tinha avisado ela era verdade, que ela não sabia o quão errado aquilo estava sendo e o quão errado aquilo foi na vida dela, porque teve outras consequências. Aí eu mudei de site um tempo depois. Além de tudo, os meus textos no site começaram a ter mais repercussão do que os desse menino e ele passou a copiar meu jeito de escrever, copiar meus textos. Literalmente copiando mesmo. Era uma coisa que qualquer pessoa que lia via que eram cópias. E com o leitor era uma coisa muito complicada, porque eu sempre fui muito ligada a áreas, digamos, sociais, à causa LGBT, à causa feminista, à causa negra, que são assuntos muito complicados dentro e fora dos estádios. Mas as pessoas têm o costume de achar que o futebol é um espaço à parte. Então, qualquer texto meu que tocava nesses assuntos ou qualquer texto meu que as pessoas descobriam que era uma mulher escrevendo e discordavam, era “filha da puta”, “vagabunda”, “piranha”, “só está no site porque deu para a pessoa certa”, que eu só tinha informação porque eu dei para a pessoa certa, que eu só frequentava CT porque eu peguei algum diretor e coisas do tipo. Mesmo nesse campo, sempre tenho preservado minha vida pessoal, mesmo que não fizesse. Não era da conta de ninguém. Eu só estava ali para escrever, sabe? Sempre foi assim. A gente tem um evento de mulheres de arquibancada nesse fim de semana. E a gente vê aquela coisa super recorrente: se você é mulher trabalhando no futebol, você tem duas opções de vida: ou você é lésbica, sapatão, mais homem do que todo mundo que está ali; ou você é ‘maria-chuteira’, que não entende nada e está ali para arrumar homem. E isso é muito complicado. Teve situação em estádio também, em que eu bebi demais, além da conta, sem saber o que estava fazendo a ponto de literalmente dormir no colo de uma amiga no intervalo do jogo, com bateria tocando atrás de mim. Na entrada do estádio, um cara, que se dizia meu amigo, levantou minha blusa, tentou beijar minha barriga, tentava me beijar, porque eu estava bêbada. Ele achou que aquilo seria ‘engraçado’. Tinha vários homens em volta, mas nenhum deles fez nada. Nenhum deles fez nada. Eu só fiquei sabendo o que aconteceu no outro dia porque um deles procurou para me contar como se fosse uma piada, sabe? Tem muitas situações assim, tanto trabalhando, quanto vivenciando estádio também."

Natália Andrade, 24 anos

Mineiras na Espanha

"O time tinha acabado de jogar. Como nosso transporte estava indisponível, a organização do evento, o Campeonato Mundial de Escolas Católicas, nos direcionou para um ônibus de transporte público de Salamanca. Os atletas tinham passe livre durante o campeonato. Entramos e fomos para o fundo do ônibus. Haviam poucas cadeiras, e eu fiquei em pé. Éramos dez jogadoras de handball, entre 14 e 16 anos. Nossa comissão técnica ficou mais próxima do motorista, não lembro o porquê. O time masculino representante da França já estava no fundo do ônibus quando nós entramos. Lembro de achá-los muito velhos para o campeonato, mas não sei as idades. Ao longo da viagem, percebi que eles falavam de nós em francês, não entendi uma palavra. Depois de um tempo, passaram a falar em inglês, língua que eu já dominava na época. Diziam que algumas de nós eram gostosas, que brasileiras eram safadas, não lembro as palavras exatas, só sei que queria que a viagem acabasse logo. Eu era muito nova e na época não existia incentivo à confronto a esse tipo de comportamento. Nem falei nada para meu técnico.

Stephanie Figueiredo, 29 anos

“Nosso lugar é no estádio, na cabine, na comissão técnica e onde mais nós quisermos”

"Minha relação com o futebol é antiga. Quando perguntam sobre assédio nos estádios, eu me recordo de várias histórias de amigas, mas nenhuma minha. Claro que eu não sou uma exceção à regra. O fato de eu nunca ter sido assediada em jogos é porque sempre vou acompanhada de um homem – meu pai ou meu namorado. Não há respeito por mim, e sim pela companhia masculina. É desanimador. O machismo ainda impera no futebol. Das músicas homofóbicas e sexistas aos comentários de que mulher não entende de futebol, passando pelas ‘musas’ dos times. Do “mulher só vê jogo se o jogador for bonito” até o “a Marta é o Pelé de saia”. Do “vai assistir novela” ao “se joga/gosta futebol é sapatão”. Já ouvi todas essas frases incontáveis vezes, frases e situações “normalizadas” no contexto do esporte. Mas a gente segue lutando contra os preconceitos, denunciando os abusadores  – não só na Copa do Mundo, por favor. O futebol tem que ser bonito para a gente também. E respeitoso. E seguro. Nosso lugar é no estádio, na cabine, na comissão técnica e onde mais nós quisermos."

K. S., 24 anos

“Você só está vendo por causa dos caras que são bonitos”

"Principalmente durante a Copa, estamos assistindo aos jogos no trabalho. No trabalho, principalmente, rola muito de o cara não saber nada, não acompanhar futebol, e ele não precisar ficar se provando toda hora que sabe. Eu, que estou acompanhando e vendo os jogos, acontece de me dizerem: “você não sabe o que está acontecendo”, “você só está vendo por causa dos caras que são bonitos”, “você não entende nada de regra”. Sinto uma insegurança de falar as coisas por medo do machismo deles. Se eu falar certa coisa do jogo, eles vão questionar se entendo de futebol ou não. Então evito falar por causa disso. Rola muito isso de rebaixar a gente por ser mulher."

Juliana Rezende, 23 anos

“Passo pelo bar rezando para não ser abordada por um escroto bêbado”

Todas as vezes que passo por um boteco cheio de homens (principalmente em dia de jogo), tenho que atravessar a rua ou dar uma volta para chegar ao meu destino (mesmo que isso me atrase mais), porque senão sou obrigada a ouvir um monte de merda, desde assobios a propostas indecentes. Quando é à noite, ou eu passo pelo bar ou faço um caminho longo e deserto. Apesar de me sentir insegura nos dois casos, passo pelo bar rezando para não ser abordada por um escroto bêbado. E teve um caso com minha amiga, não necessariamente no ambiente esportivo. Mas um cara estava ficando com ela e descobrimos que ele estava ficando com ela e outra amiga nossa ao mesmo tempo. Quando pressionamos, ele confessou que queria ‘mantê-la na reserva’. Literalmente a objetificou como se fosse uma bola de futebol.

Laura Queiroga, 26 anos

“Meu pai achava que não era certo frequentar”

Divulgação/Mineirão

"Estádio era um local hostil para mim. Apesar de amar futebol, fui ao estádio a primeira vez com 18 anos. Meu pai achava que não era certo frequentar. Ainda hoje, evito usar short, porque não me sinto à vontade. Nas arquibancadas, converso com as pessoas ao redor e já perdi as contas de quantas vezes ouvi “você é mulher, mas entende de futebol”. Comecei a acompanhar as categorias de base para escrever para um blog. Uma vez, conversando com um treinador, ele me fez uma série de perguntas e depois comentou "você realmente sabe do que está falando. Queria ver se seu trabalho era sério”."

Júlia Alves, 23 anos

“Nossa, parece homem!”

"Tem muito disso: “Ah, ela entende mais de futebol do que eu”. Direto acontece de um homem, surpreso, falar isso comigo. Teve uma situação em que fui assistir a um jogo num bar. Estávamos comentando e tal… Aí teve um cara que comentou: “Nossa, parece homem! Entende tudo de futebol”. Também tem muita cantada e de falarem isso: “Nossa, ela entende mais de futebol do que eu”."

Fernanda Maia, 28 anos


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