Fred Melo Paiva

DA ARQUIBANCADA

Atleticana é incansável. Eu sou

"Este colunista cede seu espaço a Elen Munaier, na esperança de que a fala de quem sofre o machismo possa ser ouvida"

postado em 10/03/2018 12:00

Juarez Rodrigues/EM/D.A Press
Elen Campos Munaier é redatora com formação em jornalismo e cinema. Blogueira atleticana, ficou conhecida mesmo entre os torcedores por acusar o machismo no futebol e no Atlético. Foi tachada de “jogar contra”, massacrada nas redes, ameaçada. Não se calou: com outras mulheres, fundou a Grupa, um aguerrido coletivo de atleticanas feministas. Na semana de um dos mais combativos Dia Internacional da Mulher, o Galo juntou-se à luta da Grupa. Pra falar sobre isso, este colunista cede seu espaço a Elen Munaier, na esperança de que a fala legítima de quem sofre o machismo possa ser ouvida cada vez mais sem a costumeira mediação dos homens. A bola é sua, Elen:

* * *

Quando nasci um anjo esbelto e meio doido,
desses que vão de Galoucura, anunciou:
vai carregar bandeira alvinegra.
Cargo muito pesado pra filha mulher,
esta espécie ainda subjugada.
Aceito as análises táticas com que me desafiam,
sem precisar fugir.
Não sou tão feminina que não possa xingar,
acho arquibancada uma beleza e
ora sim, ora não, creio em título sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Imagino placares, invento gritos de guerra
– perder não é amargura.
Minha tristeza é fora de série,
já a minha vontade de vibrar,
sua raiz vai aos mais de mil gols.
Vai ser machista na vida é maldição pra ignóbeis.
Atleticana é incansável. Eu sou.

Quando me vi escolhendo parafrasear o poema de Adélia Prado para a primeira postagem do novo blog, eu não sabia, mas meu inconsciente tinha certeza: “Você está cansada de ser vista como torcedor inferior”. Era 2013 e a pauta feminista ainda não havia sentado nas arquibancadas. Era época em que ainda se podia, com alguma facilidade, menosprezar o negro, chamando-o de “macaco”, ridicularizar o gay, vociferando um “bicha”, e oprimir o feminino sentenciando de “mulherzinha”. Era receber um tapinha nas costas e voltar para sua vidinha sem se dar conta do iceberg de opressão sobre o qual aquelas expressões haviam sido forjadas. Não estranho, portanto, os argumentos “sempre foi assim” e as perguntas retóricas “por que só agora?”.

Porque a história tem o tempo dela. Só agora, com 20 anos de internet, parece termos descoberto o verdadeiro potencial dessa ferramenta, que é, sim, capaz de mobilizar e levar à ação. A rede é algo que Pierre Lévy classificou como terceiro divisor de águas na história da humanidade, atrás somente da descoberta do fogo e da invenção da escrita. Os Estados Unidos elegeram um presidente com a ajuda dela.

E foi na rede que a Grupa se encontrou. Era noite de 15 de fevereiro de 2016 quando nos deparamos com um desfile em que mulheres se apresentavam semivestidas e homens completamente ornamentados, portando etiquetas que instruíam deixar a peça para a mulher lavar, pois saberia fazer melhor. Como nunca até ali, me pareceu intolerável. Nosso papel no futebol ficou nítido, preto no branco. O futebol ainda não era um espaço da mulher, como pensávamos que já fosse.

Ao entrar no Twitter, descobri que não estava sozinha. O desfile mal acabou e um grupo de vinte e poucas mulheres já havia se juntado numa plataforma online para escrever, juntas, um texto de protesto. Sem meias palavras, com toda a indignação de quem acabou de concluir que dessa vez a entrada foi dura demais. De brincadeira em brincadeira, de diferença em diferença, de esquecimento em esquecimento, de grito de guerra em grito de guerra, de abuso em abuso, a vida da torcedora não era nem de longe como a do torcedor. Não dava mais para fingir não ligar.

Uma pena que, à época, a diretoria do Galo não tenha enxergado com olhos empáticos. Grande parte dos torcedores de visão imediatista, que só via importância no jogo propriamente dito, embalados no respaldo oficial, também não. Fomos empurradas da condição de defensoras apaixonadas pelo Clube a vilãs a serem aniquiladas. Nós, o terrível exército de 20 mulheres atleticanas de araque. Um grupinho. Uma grupa. A Grupa.

Foram dois anos de questionamentos da necessidade da nossa carta, da autenticidade da nossa reivindicação, da adequação do tom que escolhemos nos posicionar – e muito pouca análise sobre as ações machistas que nos levaram a reagir. Vinte e quatro meses de massacres virtuais e ausência de posicionamento institucional em denúncias graves de violência contra mulheres por jogadores que vestiam nossa camisa. Dois anos até aqui.

Nessa semana do Dia Internacional das Mulheres, acordamos com uma alegria de mil-avô ao ver que nosso Clube tão devotado assumia-se parte da nossa luta, a luta feminina, a luta feminista. A escolha de Maria da Penha, uma Maria!, foi o nome perfeito para não deixar dúvidas: o mundo tem sido violento demais com a mulher e de tantas maneiras, que é passada a hora de cada um fazer sua parte para mudar esse jogo. Onze mulheres são estupradas por minuto no Brasil, e qualquer coisa que possa ajudar a mudar isso é urgente. É um 46 do segundo tempo constante.

Vamos juntos, Galo, que essa sempre foi nossa real vocação. Lutar contra injustiças, logo nós, que já vivemos tantas dentro de campo. É hora de deixar essa maldição coxa que nos assombra e voltar a ser lugar só de orgulho. Espaço de luta e da nossa visceral e autêntica alegria de viver.

Tags: atleticomg