Fred Melo Paiva

DA ARQUIBANCADA

O futebol devia parar. O Brasil devia parar

Sou acordado do transe com uma bofetada na cara. Aquele jogo, aqueles pênaltis... Que sentido tem isso diante do tamanho da nossa tragédia?

postado em 17/03/2018 12:00

NINJA
É triste e revoltante a interminável sequência de derrotas a que estamos submetidos. No futebol e na vida. Em nossos sonhos de grandezas ludopédicas, metáforas de tudo, e nas esperanças concretas de que os nossos filhos possam viver num país melhor. Tudo por água abaixo. Obra de governantes canalhas, dirigentes oportunistas, comandantes pervertidos, lideranças religiosas e corporativas cujo objetivo único é acumular capital que nem sequer terão tempo de usar, à custa de comprometer o futuro até mesmo dos seus. Com nove tiros pelas costas, quatro deles na cabeça, quedamos paralisados à espera de alguém que bote fogo logo nesse cabaré. Ou que venha salvar a pátria como um São Victor do Horto, o santo das causas bovinas que já foram para o brejo.

O 7 a 1 eterno, por mais que tenha sido justo e premonitório da decadência talvez irreversível do nosso futebol, ainda soa teimosamente esporádico, o ponto fora da curva. O que deixou de ser esporádico foi o “7 a 1 de cada dia”, a derrota cotidiana, a bola nas costas, quando não a bala.

Governado por uma quadrilha, submetido de novo à força e à impunidade dos militares, curvado ao mercado financeiro sem rosto nem coração, insuflado por analfabetos políticos e oportunistas plenos em maldade e preconceito, o Brasil desmorona igual ao seu futebol – de forma talvez irreversível. Nem o Galo salva. Porque mesmo sua força simbólica, de luta e resistência, começa a não dar conta da realidade.

A nossa cachaça, o nosso rivotril, o ópio do povo. Tudo isso parece ter perdido sua eficácia diante de tanta ruindade. Somos, de repente, apenas 11 homens correndo atrás de uma bola – que sentido tem isso? O futebol devia parar. O negro devia parar. A mulher, o favelado. O país devia parar. Mataram Marielle, a jovem vereadora negra e favelada defensora dos Direitos Humanos, e boçais celebraram sua morte porque “direitos só para humanos direitos”. Todos os candidatos à Presidência vieram a público se manifestar – menos o candidato dos boçais, coerente na sua defesa de crimes de tortura e execução. Alguém precisa parar essas pessoas. Distraídos venceremos, escreveu o poeta. É melhor prestar atenção. Distraídos nem sequer empataremos. No jogo que está sendo jogado, a penalidade máxima não confere uma chance – ela elimina.

Enquanto o Galo enfrentava o Figueirense na quarta-feira à noite, Marielle Franco estava sendo perseguida e assassinada por tiros de uma arma 9mm, cuja compra por policiais militares fora autorizada pelo Exército há pouco tempo. Marielle era a relatora de uma comissão da Câmara do Rio que fiscaliza a intervenção militar. Tinha denunciado as ações do batalhão de Acari, o mais letal da PM carioca. Na manhã seguinte à sua morte, quando o Brasil acordou consternado com a notícia do crime, Temer se deixava fotografar tentando equilibrar uma bola de basquete no dedo indicador.

Marielle nasceu e cresceu na favela da Maré, território controlado por traficantes onde vivem 130 mil pessoas, uma maioria de pobres e negros – as vítimas preferidas do genocídio que as PMs promovem nas periferias Brasil afora. Era mãe desde os 18. Ainda assim, e apesar das diversidades, tornou-se socióloga, uma liderança capaz de receber 46 mil votos na primeira eleição que disputou. Torcia para o Flamengo, que virava o jogo contra o Emelec no momento em que ela recebia quatro tiros na cabeça. Dois gols de Vinícius Júnior, o negro favelado que vai jogar no Real Madrid. Negro e favelado só pode jogar futebol. Quem mandou a Marielle se meter onde não devia?

O Galo perdeu do Figueirense e Marielle já estava morta, ela e o motorista Anderson Pedro Gomes, que fazia um bico cobrindo outro motorista em licença médica. O jogo foi para os pênaltis – as penalidades máximas. A cachaça, o rivotril, o ópio do povo – por alguns minutos esquecemos o 7 a 1 de cada dia. Victor, de novo, está eleito o salvador da pátria. Tem coisas que só o futebol faz por você: sonhamos com taças improváveis, e isso nos faz crer que tudo vai dar certo, o casamento, o emprego, o Brasil. Desligo a TV e fico sabendo do assassinato de Marielle. Sou acordado do transe com uma bofetada na cara. Aquele jogo, aqueles pênaltis... Que sentido tem isso diante do tamanho da nossa tragédia?

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