COLUNA TIRO LIVRE
A grande história de 2017
Voltar à vida normal era um termo que não se adequava a nada. Não mais haveria vida normal na Chapecoense, na cidade, nas famílias afetadas pela queda daquele avião
postado em 08/12/2017 09:07
Na última coluna Tiro Livre do ano, o assunto poderia ser a expectativa do Atlético pela herança da vaga na Copa Libertadores. Ou as perspectivas deste novo Cruzeiro, que retornará ao torneio continental depois de duas temporadas. Até a importância do acerto na montagem do América para sua volta à elite. Ainda: o legítimo protesto de um grupo de torcedoras alvinegras a respeito da condenação do atacante Robinho por estupro coletivo na Itália. Todos são assuntos relevantes, que devem ser debatidos, mas não dá para encerrar 2017 sem falar da grande história do ano. A de enredo mais surpreendente. Que não só simboliza aquela esperança de renovação típica dos finais de ano como nos deixa grandes lições. Por tudo isso, as derradeiras linhas desta temporada serão dedicadas à Chapecoense.
Da centenária cidade catarinense, de pouco mais de 200 mil habitantes, brotou uma crônica da vida real que talvez nem o mais inventivo dos roteiristas conseguiria passar para o papel com tamanha perfeição. Pelo menos com todos os contornos emocionantes/dramáticos/felizes que a história ganhou. Quem viu a cena dos jogadores do grupo atual da Chape abraçados, no vestiário, após a rodada final do Campeonato Brasileiro comemorando a vaga na Copa Libertadores aos gritos de “Vamos, vamos, Chape” faz, por um segundo, uma viagem no tempo.
Não dá para dissociar essa imagem daquelas captadas há pouco mais de um ano, quando uma outra Chapecoense assim festejava cada triunfo na Copa Sul-Americana. Um time modesto, que foi galgando cada degrau ao custo de muito suor e dedicação. Um time – e aqui a palavra extrapola o sentido dos 11 titulares – que merecia ter sido premiado em campo. Que merecia ter escrito aquele último capítulo, interrompido nos arredores de Medellín, às vésperas da primeira grande decisão de seus 43 anos de fundação.
O que se seguiu ao desastre aéreo do dia 29 de novembro de 2016, que tirou a vida de 71 pessoas, foi imensurável. Naquela tragédia, a Chapecoense foi quase que totalmente dizimada. Perdeu dirigentes, comissão técnica e um grupo praticamente inteiro – só não viajaram para a Colômbia atletas que estavam em tratamento ou em retorno de recuperação, como o zagueiro Rafael Lima, que hoje defende o América. E isso você pode creditar ao acaso ou aos caminhos já traçados para cada um. Vai depender das suas crenças. A minha aponta para a segunda opção.
Voltar à vida normal era um termo que não se adequava a nada. Não mais haveria vida normal no clube, na cidade, nas famílias afetadas pela queda daquele avião. Era necessário reconstruir a história. Determinar um novo ponto de partida, um marco zero. Todos eles tiveram de recomeçar. Aprender a viver com aquela lacuna. Até hoje a ferida não está cicatrizada em viúvas e filhos de quem se foi. Até hoje não foram determinados culpados. Mas o clube, como instituição de futebol, precisou seguir em frente. E aí entram os ensinamentos para os boleiros de todas as paragens.
Não é exagero dizer que a Chapecoense começou 2017 sem nada. Bom, para não dizer que foi literalmente assim, tinha o estádio e as dependências do clube. Aos poucos, o renascimento foi sendo forjado, numa corrente de solidariedade mundial jamais vista no mundo esportivo. Clubes do Brasil emprestaram jogadores (muitos deles, refugos, é verdade). O Barcelona doou 250 mil euros (R$ 830 mil na cotação da época) e ainda organizou um amistoso na Espanha.
As equipes brasileiras chegaram a iniciar um movimento para que a Chape ficasse isenta de rebaixamento na Série A por três anos. A ideia não foi adiante por dificuldades jurídicas, já que envolveria mudança de regulamento, mas o fato de os dirigentes catarinenses terem considerado a situação “constrangedora” também colaborou. Plínio David de Nês Filho, que assumiu a presidência, disse que a equipe deveria disputar a permanência em campo. Isso não só aconteceu, como a Chapecoense fez mais.
É claro que a caminhada não foi suave. Teve lá seus percalços, troca de treinadores ao longo do ano e até duras críticas dos torcedores quando a equipe titubeou em campo. Não houve condescendência com o retrospecto. Com a bola rolando, a torcida queria vê-la no fundo das redes adversárias. E quando isso não saiu do jeito que ela queria, nem todo mundo contemporizou.
Ao encerrar 2017 com o oitavo lugar no Brasileiro e a vaga na pré-Libertadores garantida por seus próprios méritos, a Chape mostrou que o futebol pode ir muito além de nomes consagrados. De jogadores com salários milionários. Da soberba comum a muitos dirigentes. Você pode até considerar o que ocorreu com a equipe catarinense uma exceção à regra. Talvez uma conjunção astral favorável, daquelas que ocorrem uma vez a cada milhão de anos, por um capricho dos deuses. Mas a grande moral da história é que futebol se faz com dinheiro, sim, porém não só com dinheiro.
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