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JUDÔ

Aos 14 anos, Luciana Silva vem acumulando vitórias dentro e fora do tatame

Pernambucana de 14 anos conquistou, no início do mês, a medalha de ouro no Sul-Americano e o bronze no Pan-Americano, disputados no Peru

postado em 18/11/2017 10:00 / atualizado em 17/11/2017 20:06

Nando Chiappetta/DP
O tornozelo esquerdo visivelmente inchado, a dor e a dificuldade em andar são lembranças de um momento de felicidade. Sim, felicidade, realização, conquista. Luciana Silva, 14 anos, nem sentiu a torção na hora em que o pé escorregou no vão entre dois tatames que haviam se afastado. Logo em seguida, ela aplicou um golpe, derrubou a adversária e partiu para a imobilização. Venceu a luta final do campeonato Sul-Americano de judô disputado em Lima, no Peru, no início do mês. Tornou-se campeã na categoria sub-15 até 40kg. É o título mais importante da sua iniciante, mas já bastante vitoriosa carreira. Por isso, o sorriso presente, apesar do visível incômodo causado pela lesão, que ela só veio a sentir após o fim do confronto. “Eu ainda estava no calor da luta. Só depois inchou bastante e começou a doer. Estava maior do que isso”, conta ela, apontando para o local. “Acho que se eu não tivesse derrubado ela e imobilizado logo depois, ia ser bem complicado”.

Luciana está de joelhos no tatame do dojô do Movimento Pró-Criança, posição tradicional em que os alunos ouvem as primeiras palavras do professor antes do treino. Ela não vai poder treinar em seguida por conta da lesão no tornozelo. Recebe o Superesportes um dia após retornar do Peru, com direito a festa no aeroporto. Veste um kimono impecável, limpíssimo, envolto pela faixa verde com o “BRA” nas costas. Foi com ele que ela competiu.

Desde que iniciou no judô, aos oito anos, a adolescente tem realizado alguns sonhos e alcançado objetivos importantes para o presente e futuro. Um deles era justamente representar o Brasil, colocar o “BRA” nas costas e bordar a insígnia da Confederação Brasileira de Judô (CBJ). O caminho até lá foi longo. Campeã pernambucana (quatro vezes), regional (três vezes) e, enfim, brasileira, quando garantiu a vaga para o Sul-Americano e para o Pan-Americano, que aconteceram simultaneamente em Lima. Além do ouro no primeiro, foi bronze no segundo.

O início

O judô foi uma paixão que encantou Luciana quando ela tinha sete anos e frequentava as aulas de arte no Movimento Pró-Criança, uma entidade beneficente localizada no bairro dos Coelhos, que atende a crianças e adolescentes, oferecendo diversos tipos de atividades. A irmã dela, Camila, já havia frequentado o local. A iniciativa de matriculá-las foi da sua avó Maria das Neves, que queria ocupar o tempo delas após a escola. Quando criança, Luciana até gostava das aulas de artes, mas um dia viu uma turma treinando judô e se interessou.

“Eu pedia pra ir beber água para sair da aula de arte e ficar olhando o pessoal treinando”, lembra. Insistiu muito, “mas muito mesmo”, garante, para entrar. Contudo, descobriu que só poderia fazer a matrícula no ano seguinte. "Eu fiz de tudo. Pedi direto ao professor, subi para falar com a coordenadora, mas eles me disseram que não tinha como, e eu tive que esperar.” No início de 2011, tão logo se iniciaram as matrículas, a mãe a inscreveu na modalidade. “Ou era isso ou eu não ia fazer mais nada”, conta.
No judô, Luciana diz que aprendeu a ser mais responsável, disciplinada e concentrada, traços de personalidade que ficam bem claros durante a entrevista. Apesar de ter apenas 14 anos, a adolescente tem um discurso muito consciente sobre sua realidade, o que conquistou e os objetivos que quer alcançar.

“O judô preza muito pela disciplina e trouxe coisas maravilhosas para a minha vida. Tenho um ensino bom, para ter uma base boa de educação. Mesmo que eu não consiga ser uma atleta, vou poder ser uma boa profissional. O judô contribuiu muito para eu ter compromisso, respeito, educação e responsabilidade”, conta ela, que há dois anos ganhou uma bolsa de estudos no colégio particular Maria Auxiliadora. 

Nando Chiappetta/DP
 

A influência da avó materna

O esporte ajudou a lapidar a personalidade da menina, mas, antes de tudo, uma pessoa em especial foi decisiva para a sua formação: a avó Maria das Neves, com quem Luciana mora junto à mãe e a irmã mais velha na comunidade dos Coelhos, numa rua logo atrás da sede do Pró-Criança. Foi ela, por exemplo, que a bancou no judô quando familiares e amigos tentaram influenciar a mãe a tirá-la do esporte.

“Tentaram fazer a cabeça dela (mãe) dizendo que era esporte de homem, que eu devia fazer balé, que eu poderia quebrar um braço ou coisa assim. Ela nunca disse que ia me tirar (do judô), mas ficava em dúvida. A minha avó não. Sempre insistiu para que eu continuasse e convenceu minha mãe a não ouvir essas pessoas”, conta. Mais uma vez, a judoca bateu o pé. “Eu disse: ‘Se me tirar do judô, também não vou mais para lugar nenhum”.

Luciana é o exemplo de como o esporte abre portas, ajuda a evitar outros caminhos. Na comunidade onde ela mora, muitos meninos e meninas da sua geração estão sem perspectiva por conta da falta de oportunidades. Sentença de um tecido social excludente do qual ela é a exceção.

“O jovem de hoje é complicado. Ele nem sempre tem uma base. Vejo várias meninas de 14,15 anos grávidas. Perdem estudo e não têm como dar uma qualidade de vida para o filho. Vejo muitos jovens pela comunidade fumando ou vendendo drogas. Eles poderiam ter um futuro promissor, mas não conseguiram. Muitos não têm uma cabeça forte e se deixam influenciar. Minha avó sempre conversa comigo sobre isso, para não me deixar levar por más influências”, diz.

As referências no tatame: Rafaela Silva e Taís

É inevitável ouvir a história de Luciana e não lembrar de Rafaela Silva, judoca medalha de ouro na Olimpíada Rio-2016. A origem humilde (nasceu na Cidade de Deus, comunidade do Rio), o apoio da família e a chance que veio por meio de uma entidade assistencial são semelhanças que levam a uma identificação. “Gosto muito da Rafaela (Silva). Me identifico com a história dela, é parecida com a minha”.

Antes, porém, Luciana teve outro ídolo no judô, bem mais próximo dela. “Taís era uma menina aqui do projeto que se destacava. Ela viajava para os campeonatos, conquistava medalhas. Ela era um espelho para a gente e eu treinava para ser como ela”, conta. Taís deixou o judô. Às vezes aparece nos treinos para rever os amigos.

Luciana tem ídolos. Fala sobre Rafaela Silva e a amiga Taís. Mas sabe que ocupa esse espaço em relação a outros judocas. Luciana é o espelho para tantos outros alunos do Pró-Criança. Embora o projeto produza uma série de atletas vitoriosos, com bons resultados em termos estaduais, ela é a que vem chegando mais longe. Mais uma vez, dá uma aula de maturidade. Sabe da responsabilidade que tem perante aos demais e que, apesar das suas conquistas, não é melhor do que ninguém.

“Hoje, eu sou o espelho. Converso com os pequenos e sei da responsabilidade. Tenho que dar o exemplo, me dedicar e não posso achar que sou a melhor. Terminou a competição e voltou, tem que começar a treinar de novo”, afirma.

Rotina

A rotina de Luciana é corrida para uma menina de apenas 14 anos. Acorda às 5h40 se apronta e vai para a escola. Quando sai, passa em casa, almoça e segue para o treino. Depois, tem reforço escolar na comunidade. Chega em casa entre 20h30 e 21h30, ainda com fôlego para percorrer a internet para fazer algum trabalho escolar ou ver vídeos de judô. Ela tem plena consciência de que a vida de atleta requer sacrifícios.

“Se eu escolhi isso para a minha vida, tenho que seguir direito. Tem que abdicar de certas coisas”. Por isso, ela diz que toma cuidado com a alimentação para se manter no peso da categoria e pouco sai de casa. Mais uma vez, ouve o conselho da avó. “Sei que consegui coisas boas e pretendo conseguir mais ainda. É como minha vó diz: se quer ter um futuro bom, tem que ralar agora para ter uma condição de vida boa lá na frente. Se sacrificar agora.”

Nando Chiappetta/DP
 

A seleção como próxima meta

Nos fundos do grande terreno que tem como construção principal um grande casarão, na rua dos Coelhos, na Ilha do Leite, onde funciona a matriz da ONG Movimento Pró-Criança, fica um pequeno galpão, logo após o campo de futebol. É lá onde funciona o dojô que atende a 120 crianças. Nota-se o esforço para fazer daquele local apropriado para a prática do esporte. O tatame é novo e bem cuidado. “Hoje está assim, mas até conseguirmos isso foi preciso muito esforço”, conta Marcílio Félix, que comanda as aulas na unidade.

Há dez anos, o judô chegou à unidade dos Coelhos do Pró-Criança. Antes, havia apenas na unidade de Piedade. O esporte foi escolhido por conta da sua capacidade de trazer disciplina aos alunos. Chegou como atividade complementar, mas, diante do interesse, é hoje uma atividade central. Sob o comando de Marcílio, atualmente, na matriz, estão 120 crianças. “A ideia do judô é a capacidade de trabalhar o indivíduo como todo”, afirma o professor. “Foi o casamento perfeito com a missão da instituição”.

Ainda assim, o Pró-Criança se destaca esportivamente. Na parede do dojô, o certificado da Federação Pernambucana de Judô atesta. “Destaque geral no Pernambucano em 2016”. Em 2017, segue no mesmo passo. Das três fases do estadual, foi campeão geral em todas. “Ficamos à frente de qualquer clube ou associação”, afirma, orgulhoso, Marcílio, ressaltando, porém, que medalhas e títulos são detalhe perto do que é conquistado ali. “O nosso principal objetivo, aqui, é preparar para a vida”.

Marcílio acompanha Luciana desde o início da sua trajetória. Lembra da menina insistente que queria porque queria participar das aulas. “Ela assistiu a um treino e se encantou”, conta. A dedicação é a parte mais marcante na atleta, segundo o professor, que lembra da primeira vez em que ela competiu fora do estado, em 2014. “Foi a primeira competição que ela representou o estado e ficou muito orgulhosa. Quando saiu, disse que era aquilo que queria para a vida”.

Assim que se recuperar da torção no tornozelo, Luciana vai se concentrar nas seletivas para chegar à seleção brasileira. É um passo importante, mas que será dado com todo cuidado. Embora seja um talento reconhecido, tem um longo caminho pela frente. Em dezembro, vai encarar uma seletiva nacional para integrar as categorias de base da seleção. A dificuldade para ela é que a seletiva é sub-18, ou seja, vai enfrentar adversárias mais velhas e experientes que ela. Os planos dela vão além. “Meu sonho é continuar competindo e chegar a treinar com a seleção principal. Quero competir até certa idade, depois que parar, vou continuar treinando. Quero cursar educação física e dar aulas de judô”, afirma.